Autora: Guida Guardado
Era uma vez um galito que vivia numa capoeira de uma quinta. Ele sentia que era feliz naquele espaço a viver com os outros galos e galinhas, mas no fundo do seu coração ele desejava mais. Ele era um animal com bastante energia, andava sempre muito depressa e os seus pensamentos sobre a vida também.
Fisicamente, ele era muito semelhante aos seus pares. As suas penas eram bastante coloridas e brilhantes, não era muito grande, mas era esbelto e tinha orgulho nisso. As suas patas estavam sempre bem asseadas pois fazia questão de estar sempre impecavelmente vistoso. Quanto à sua maneira de estar, ele era muito diferente dos da sua espécie. O galito pensava muito e tinha uma mente muito imaginativa. De vez em quando ninguém tinha paciência para aturar as ideias e suposições que ele fazia sobre a vida. Os outros apenas queriam viver sem pensar muito em sentimentos e emoções.
Aparentemente, o galito estava no sítio que devia estar e com companheiros que devia ter. Tinha muitos amigos e as galinhas gostavam muito da sua companhia. Apesar de ele gostar dos seus momentos de isolamento, havia uma galinhola que era muito parecida com ele e fazia-lhe companhia muitas vezes. Ela era muito recatada e misteriosa e os dois, por vezes, partilhavam ideias sobre aquilo que sentiam e as aprendizagens que faziam. Juntos fizeram muitas coisas, mas no fundo o galito era um ser insatisfeito. Achava que a vida tinha tanto para dar e ele estava ali fechado naquele espaço, só com aqueles animais.
O tempo foi passando e o galito aceitou a vida que tinha, apesar de sentir que tinha potencial para ir mais além. No entanto, havia algo que ele nunca tinha contado a ninguém. Ele tinha medo do que estava para além da capoeira, apesar de toda a sua curiosidade, faltava-lhe a coragem para sair daquela gaiola e voar, voar para longe. Afinal ele era um animal com asas.
Um dia aconteceu algo inesperado, a terra começou a tremer. Ainda os humanos não tinham dado conta, já todos os animais estavam em sentido e andavam de um lado para o outro bastante preocupados. Os animais sentem estes fenómenos da natureza, eles pressentem coisas que os humanos não conseguem sentir. A terra cada vez começou a tremer mais. A construção do galinheiro era velha e estava a precisar de arranjo. Com a vibração do tremor de terra uma parte da vedação caiu. O galito e os outros galináceos quando deram conta daquela situação ficaram muito aflitos, ver o mundo lá fora era muito assustador. Eles estavam tão habituados a ver o mundo de dentro da capoeira que agora que tinham a liberdade de sair estavam extremamente assustados.
Os galos e as galinhas fugiram todos para o canto oposto ao local onde a vedação caiu. Ficaram bem juntinhos e desejaram muito que tudo aquilo acabasse e voltasse ao normal, àquilo que eles chamavam de normal. O galito não fugiu, ficou imóvel a olhar para tudo o que estava a acontecer e só pensava que a vida lhe estava a dar a hipótese de poder fugir e conhecer o mundo lá fora. Uma parte dele tinha muito medo daquela liberdade, outra queria desesperadamente fugir. A galinhola aproximou-se dele e sussurrou:
– Tenho medo… anda ter connosco àquele canto, galito.
– Não. – foi a única palavra que saiu do seu bico.
– Vais-me abandonar? – perguntou ela um pouco magoada.
– Esta é uma oportunidade de fugir e conhecer o mundo. – disse ele bastante pensativo
– Como é que podes pensar em fugir da capoeira e deixar-nos aqui? – perguntou a galinhola muito admirada.
– Não sei explicar, mas há um sentimento muito forte dentro do meu coração que me leva a ir embora. Chegou a hora de pensar em mim. – explicou ele.
O tremor de terra intensificou-se mais um bocado e todos os animais cacarejaram ainda mais alto. O galito ganhou coragem e correu em direção à parte da vedação que estava caída, num ápice desapareceu no meio daquela confusão. Só a galinhola é que viu e ficou muito triste, pois ele era o seu único companheiro. Apesar da tristeza, ela passou a admira-lo porque ele tinha tido a coragem de fugir e mudar a sua vida.
Aos poucos tudo se foi acalmando. O galito nem conseguia pensar em nada, limitava-se a caminhar pelo campo e a observar tudo à sua volta. Junto à quinta onde ele vivia havia uma cidade e ele estava espantadíssimo a olhar para todas aquelas casas e prédios que nunca vira ao vivo. Sabia que elas existiam, por vezes aparecia pelo chão umas folhas velhas de revista e ele já tinha visto algumas imagens.
No meio de um campo, encontrou aquilo que parecia ser uma grande pedra coberta de feno. Saltou lá para cima e olhou o mundo. Inspirou fundo e sentiu a liberdade de poder ser e fazer o que quisesse. Era uma sensação indescritível, no entanto, rapidamente a sua mente o relembrou dos medos que estavam esquecidos. Quem lhe daria de comer? Onde iria ele dormir? Como iria sobreviver num mundo completamente desconhecido? O seu corpo começou a vacilar, estava a entrar em pânico. De repente sentiu novamente o chão tremer.
– Socorro! – cacarejou ele. – Começou tudo outra vez!
– Estás a falar comigo? – perguntou uma voz melancólica que saia debaixo dos seus pés.
– Estou em cima de uma pedra falante? – questionou-se o galito.
– Bem, já me chamaram muita coisa, mas pedra é a primeira vez. – disse a mesma voz enquanto uma cabeça surgia pelo meio do feno.
– Ah! Não é uma pedra! É uma tartaruga tapada pelo feno! – exclamou o galito. – O que fazes aqui? Também fugiste de terramoto?
A tartaruga lentamente deslocou-se de sítio e as palhas saíram de cima dela. O galito, por sua vez, continuava em cima da sua carapaça muito sério a observá-la. Ela deu uma volta para um lado, uma volta para o outro e disse:
– Importas-te de sair de cima de mim? Assim não te consigo ver.
– Ó desculpa! Tens toda a razão, nem tinha pensado nisso. – desculpou-se o galito, dando um salto para o chão. – Olá, eu sou o galito e vivia numa quinta aqui perto.
– Olá eu sou a tartaruga, mas acho que isso tu já percebeste. Eu não fugi do terramoto, aliás, não se pode fugir do terramoto! – exclamou a tartaruga a sorrir, ela tinha um sentido de humor bastante peculiar.
– Não se pode fugir de um terramoto?! – questionou-se o galito.
– Claro! Se ele está a acontecer em todo o lado como é que foges dele?! – riu a tartaruga.
– Bolas, tens razão. Estava um bocadito distraído! Ainda não me habituei ao facto de estar livre e a minha cabeça está um pouco baralhada.
A conversa entre os dois durou mais algum tempo. A tartaruga explicou ao galito que tinha sido abandonada pelos seus donos enquanto era pequena. Quando eles a compraram, ela era muito pequenina e cabia perfeitamente numa espécie de aquário que os seus donos tinham comprado para ela. Com o passar do tempo ela foi crescendo e aquele espaço já não servia. Um dia, sem ela perceber bem porquê o seu dono trouxe-a até quele sítio e deixou-a ali ficar, perto do lago que estava junto deles. Sorriu-lhe e foi-se embora.
Durante muito tempo, ela ficou à espera que ele voltasse para a vir buscar, mas nunca veio. Com o passar do tempo, a tartaruga foi ficando cada vez mais triste e teve de aprender a sobreviver sozinha. Conheceu alguns animais, mas nunca fez nenhuma amizade forte, porque deixou de confiar nos outros. Cada vez ficou mais solitária e refugiava-se dentro da sua carapaça, muitas vezes escondida debaixo do feno daquele campo que ficava perto do lago. Quando percebia que os donos da terra surgiam para recolher o feno cortado, ela tentava fugir o mais rápido possível, quer dizer à velocidade que ela conseguia fugir. Mas nunca tinha sido apanhada por nenhum humano.
O galito ouviu a história da tartaruga com muita atenção e conseguiu sentir a tristeza que ela ainda sentia por ter sido abandonada. Ele também contou a sua história e explicou-lhe que nasceu e viveu sempre na capoeira de uma quinta, mas sempre se sentiu diferente dos outros. Ele gostava de conhecer o mundo.
Estavam tão entretidos que nem deram pelo anoitecer. O galito não tinha para onde ir e a tartaruga convidou-o a ir com ela. Este não era um comportamento normal na tartaruga, fazer amigos. No entanto, este galito tinha qualquer coisa de especial e de alguma forma tinha tocado o seu coração.
Os dias foram passando. A tartaruga ensinou o galito a sobreviver naquele sítio. Ele aprendia muito depressa e rapidamente estava integrado na vida solitária da tartaruga. Esta, por sua vez, tinha arranjado um companheiro que a cativava. Ela olhava para ele e sentia-se orgulhosa de ter um amigo corajoso e energético como o galito. Aparentemente, eles tinham muitas coisas em comum. Ambos gostavam de ver o pôr-do-sol a cair e as estrelas à noite. A tartaruga divertia-se com as conversas tolas do galito e este adorava passear montado na sua carapaça. Tudo ia bem e a amizade foi crescendo.
O galito conheceu outros animais que também viviam perto do lago. Como ele era muito sociável logo fez amizade com todos eles. A tartaruga, que era mais recatada, não gostava muito daquelas confusões e sentia um bocadinho de ciúmes do galito ter tantos amigos. Ela gostava de passar tempo com ele a observar a natureza, mas o galito tinha muita energia e gostava mais de conversar e fazer coisas. Apesar de ele também gostar daqueles momentos de calmaria com a tartaruga, adorava a agitação que encontrava nos outros animais.
Na realidade, o galito e a tartaruga era animais bastante diferentes. A tartaruga era calma, envergonhada, não gostava de expor os seus sentimentos e era paciente, se não resolvesse o seu problema hoje, resolveria amanhã. O galito era agitado, adorava falar sem parar sobre o que sentia, sobre as suas aprendizagens e sobre tudo. Rapidamente a relação deles começou a deparar-se com grandes desafios. De início tudo correu lindamente, eles estavam fascinados um pelo outro e nunca ninguém tinha cuidado deles assim. No entanto, as diferenças começaram a aparecer.
O galito fez amizade com um mocho que vivia numa das árvores junto ao lago. O mocho era um animal muito inteligente e organizava encontros entre os animais em volta do grande carvalho. Ele, de vez em quando, voava até junto das casas e aprendia muito a ouvir à janela de uma senhora que dava consultas a várias pessoas. Essa senhora falava das emoções e dos sentimentos, ensinava as pessoas que lá iam a ver a vida de outra forma, a alimentarem-se consoante as necessidades do seu corpo e a mudarem algumas maneiras de pensar, que não eram benéficas para elas. O mocho achava aquelas conversas interessantíssimas e então quando regressava à sua árvore organizava sessões com os outros animais. Contava-lhes o que tinha ouvido e ajudava-os a conhecerem-se melhor, no fundo fazia o mesmo que a tal senhora que dava consultas.
O galito adorava aquelas reuniões com o mocho. A tartaruga de início também gostava de ir, mas depois começou a fartar-se, pois olhar para o seu passado e perceber o que estava a sentir causava-lhe bastante sofrimento e ela não queria voltar a sentir certas emoções. O galito ia na mesma e cada vez absorvia mais das conversas do mocho. Apesar de se sentir triste algumas vezes, quando recordava momentos da sua infância em que a vida não tinha sido fácil, aprendia a gostar mais dele próprio, a perdoar os outros e principalmente a perdoar-se por não ter feito certas coisas de outra forma.
Um dia o mocho explicou-lhe que todos os seres, quando são pequenos e ainda não compreendem bem o mundo, limitam-se a imitar os outros para aprender. Quando acontecem coisas que os magoam elas ficam registadas nas suas cabeças. Com o tempo vão-se esquecendo delas, mas elas não desapareceram. Mais tarde, quando são mais crescidos e acontece qualquer coisa, o cérebro vai-se lembrar desses sentimentos e eles têm reações que não conseguem compreender. A única solução neste caso será pedir ajuda e tentar recordar aqueles momentos que os traumatizaram tanto, para os conseguirem ultrapassar, libertar a raiva que se sente e encarar as situações de que se tem medo.
O galito, quando regressava para junto da tartaruga vinha cheio de energia e queria-lhe contar tudo. Ele sabia que a tartaruga tinha alguns traumas do passado que precisava de curar. Então ele achava que se lhe contasse as suas aprendizagens ela poderia mudar, tal como ele fazia com ele mesmo, e superar as dificuldades que sentia. Mas a tartaruga não estava disposta a fazer aquilo que o galito queria. O galito ainda não tinha compreendido que cada ser é responsável pelo seu caminho e a tartaruga era livre para escolher o seu. Ele gostava tanto da tartaruga que achava que a ia salvar da sua vida dolorosa.
Quanto mais o galito insistia em ensinar a tartaruga a olhar para si, a encarar os medos e a perceber as suas crenças, ou seja aquilo que ela acreditava ser verdade mas muitas vezes não era, mais a tartaruga se refugiava dentro da sua carapaça, mais se escondia e menos queria lidar com o galito.
O galito por sua vez passava os dias a saltitar em cima da carapaça da tartaruga.
– Cuca! Está aí alguém? – perguntava ele espreitando para dentro da sua carapaça. – Tartaruga? Porque é que não me ligas?
– Deixa-me em paz! Agora não me apetece falar contigo. – reclamava a tartaruga.
– Não sejas assim, sai daí e fala comigo. – pedia insistentemente o galito.
– Diz lá o que queres, já não consigo ouvir o teu bicar na minha carapaça. – dizia ela apenas com a pontinha da cabeça de fora.
– Eu sei que estás cheia de medo de encarar o teu passado. Porque é que não vens comigo às reuniões do mocho? – perguntava o galito.
– Eu estou bem. Não percebo porque insistes tanto. Tu é que tens coisas para resolver, eu estou de bem com a vida. O passado já lá vai, agora só quero olhar para o futuro. – respondia-lhe a tartaruga.
O galito tentava explicar-lhe que não era bem assim. Sabia que a tartaruga sofria muito por ter sido abandonada em criança e também sabia que para ela poder ultrapassar este problema e ser feliz tinha de voltar a olhar para aquelas situações e perceber como se tinha tornado um ser mais forte e corajoso depois de ter passado por tudo o que tinha acontecido. Ela não poderia alterar o passado, mas podia olhar para ele com outros olhos e perceber o lado positivo de tudo o que aconteceu. Ela só era aquela tartaruga, forte e que conseguiu sobreviver sem ajudas, porque tinha ultrapassado todos os desafios que viveu.
Aquela que era uma relação maravilhosa de amor e amizade, passou a ser uma relação de esforço. O galito queria que a tartaruga fosse como ele e a tartaruga não entendia porque é que o galito não a deixava em paz. Os momentos de cumplicidade que eles tinham começaram a desaparecer e discutiam mais do que conversavam. Na vida, os momentos de discussão também são importantes, mas respeitar o outro e a si próprio também.
Para além de todos estes desafios, o galito estava completamente dependente dos conselhos do mocho, já não sabia viver sem eles. Como andava cheio de problemas com a tartaruga ia-se queixar muitas vezes. Então um dia, o mocho disse-lhe que estava na altura de ele fazer escolhas seguindo o seu próprio instinto, em vez de andar sempre a queixar-se por tudo e por nada. Bastava ouvir a voz do seu coração e da sua consciência. Não podia dar ouvidos a todos os medos que a mente lhe sussurrava ao ouvido, nem às culpas e críticas do ego. O galito ao ouvir isto ficou um bocadinho confuso, quem era aquela gente toda?
– A mente são os teus pensamentos. – explicou o mocho muito calmamente. – Eles estão sempre a surgir na tua cabeça, muitas vezes são tão diferentes e mudam tão rapidamente que parecem um macaquito a saltar de galho em galho.
– É verdade! Eu até tenho por hábito fazer uma série de coisas ao mesmo tempo! – exclamou o galito.
– Pois tens, mas depois nenhuma é feita com consciência, e andas sempre preocupado, ansioso e numa busca constante por algo que nem tu sabes o que é. – explicou o mocho.
– Como é que leste os meus pensamentos? – perguntou o galito intrigado.
– Porque eu já passei por aí, eu também já fui assim como tu, mas aprendi a olhar para mim e a mudar algumas coisas. – respondeu-lhe o mocho.- O ego, é aquela parte de ti que critica muitas vezes, que culpa e que se faz de vítima porque é vantajoso! Todos temos um ego. Ele faz tudo isto em relação aos outros e a ti próprio. Cuidado pois é muito fácil deixá-lo mandar na tua vida.
– Agora que falas nisso, também reconheço alguns desses comportamentos em mim. – refletiu o galito.
– É importante ouvires o teu coração e a tua intuição. Eles vão-te sempre ajudar a fazer escolhas.
– Eu não gosto nada de escolher, porque tenho medo de fazer as escolhas erradas. – refilou o galito.
– Não há escolhas certas ou erradas. Há apenas escolhas e cada uma tem consequências boas ou menos boas. Mas todas te trazem responsabilidade, porque és tu que as fazes. Se andas triste com a tartaruga tens de resolver esse desafio. Há muitas coisas que os dois devem aprender. Os relacionamentos são mesmo assim, quem está à nossa volta têm muitas funções e uma delas é estimular-nos para podermos enfrentar os desafios que mais precisamos para crescer e evoluir. Pensa no que tens a aprender com a tartaruga e rapidamente vais entender os comportamentos dela.
– Mas isso é tão difícil… – queixou-se o galito.
– Segue a tua intuição e agora vai, só voltas a falar comigo quando tiveres tudo resolvido. Força e coragem, não te esqueças que a vida é mágica e tem sempre guardado para ti algo muito bom. – relembrou-lhe o mocho.
O galito depois desta conversa ficou bastante inquieto. Sabia que não podia andar sempre a recorrer ao mocho para resolver os seus problemas, tinha de ser ele a enfrentar as situações e lembrou-se da altura em que teve coragem e fugiu do galinheiro. Desta vez não iria ser pior do que isso, pensou ele.
Ele voltou para junto da tartaruga e os dias foram passando. O galito começou a perceber que não podia mudar a maneira de ser da tartaruga. Ele só podia mudar a sua maneira de pensar e de estar na vida, não podia mudar os outros. E mesmo assim mudar a sua maneira de pensar já era muito difícil, diria até um grande desafio.
A tartaruga andava triste. Ela gostava muito do galito, mas ele era muito agitado, brincalhão e gostava de estar sempre a fazer coisas. Ela tinha medo que ele se fartasse da sua companhia uma vez que ela era mais sossegada e pacata.
Mas como é que eles iriam resolver esta situação? Apesar das suas diferenças e de se terem apercebido que faziam o outro sofrer, eles gostavam muito um do outro e não queriam perder aquela amizade.
Depois de muitas voltas e de várias tentativas para que tudo corresse bem, um dia acordaram, olharam um para o outro e souberam o que tinham a fazer. Conversaram e decidiram que o melhor para os dois era afastarem-se. Pois se eles continuassem juntos, a alimentar aquelas conversas aborrecidas e os medos que os dois sentiam, aquela amizade e aquele amor que tinham um pelo outro iria desaparecer. No seu lugar iria crescer a mágoa, a tristeza, o sofrimento e a culpa da sua relação ter chegado até ali.
Apesar de saberem que aquela decisão era a mais acertada, tinham uma sensação muito esquisita. Como é que dois seres que gostam tanto um do outro e que são tão amigos podem querer afastar-se? Os dois foram até ao carvalho do mocho falar com ele.
– Bem vindos meus amigos, o que vos trás por cá? – perguntou-lhes o mocho.
– Eu e a tartaruga tomámos uma decisão, mas apesar de sabermos que é a escolha certa sentimo-nos esquisitos e viemos pedir a tua ajuda. – explicou o galito.
– Eu já sei qual é a decisão que vocês tomaram! – sorriu o mocho.
– Como é que sabes, mocho? – questionou a tartaruga.
– Porque só essa decisão é que vos traria até aqui hoje. Eu já sabia que mais tarde ou mais cedo vocês os dois se iriam afastar. – respondeu o mocho.
– Como é que sabias? Eu não te contei? – perguntou o galito estupefacto.
– Porque quando nós gostamos realmente de alguém e de nós próprios, não queremos trazer sofrimento ao outro nem a nós mesmos. Quando conhecemos o amor sabemos que não somos donos de ninguém e sabemos que devemos deixar o outro fazer as suas escolhas e aprendizagens sem a nossa intervenção. – explicou o mocho calmamente.
– Acho que é mais ou menos isso que nós percebemos. – disse a tartaruga envergonhada.
– Não se devem envergonhar da decisão que tomaram. É só uma escolha, não é o fim do mundo! – riu o mocho.
– Mas para nós, agora, parece o fim do mundo. – disse o galito. – Porque ainda não nos separámos, mas já temos saudades um do outro. No entanto sabemos que não podemos continuar a discutir.
– Então não tenham medo de assumir essa escolha que fizeram e experimentem viver cada um por si. Isto não significa que nunca mais se vão ver ou falar. Simplesmente vão deixar o outro ser livre para decidir fazer com a sua vida o que quiser. Vão amar o outro sem exigir algum tipo de condição, mas agora só o conseguem fazer à distância.
– Achas que vamos ser capazes? – questionou a tartaruga.
– Não sei. – disse o mocho. – Só depende de vocês. Mas se não experimentarem também não sabem.
– Tens razão mocho. Temos de enfrentar este medo e libertar o outro para viver a sua vida. De certeza que vamos fazer muitas aprendizagens e encontrar muitos desafios. – disse o galito.
– E se o galito encontrar outra amiga e esquecer a amizade que tinha comigo? – questionou a tartaruga. – Não quero perder a amizade dele.
– Tens razão tartaruga também já tinha pensado nisso. – disse o galito.
– Percebem como vocês estão tão dependentes um do outro? Se a amizade for verdadeira nunca vai desaparecer. – explicou o mocho.
Os dois amigos afastaram-se do grande carvalho bastante cabisbaixos. O galito colocou uma das suas asas em volta da tartaruga e despediram-se. A tartaruga continuaria a viver onde estava e o galito passou para a outro lado do lago. Não se iriam ver durante algum tempo, mas sabiam que havia um sentimento que os continuava a unir. Sorriram e afastaram-se.
De início não foi fácil viver daquela maneira. Perceberam rapidamente que eram tão dependentes um do outro que nunca tinham olhado realmente para eles próprios. O galito começou a ver que aquilo que a tartaruga lhe falava sobre a sua maneira de ser era verdade e aos poucos foi tentando mudar o que ele não gostava nele próprio.
A tartaruga percebeu que afinal olhar para os seus medos não era assim tão mau. Teve coragem para olhar para o passado e relembrar o dia em que fora abandonada. Voltou a sentir aquela tristeza, mas depois percebeu que tinha sido aquela situação que lhe tinha dado forças para viver sozinha, para aprender tanta coisa e para ser livre. Estava na hora de perdoar o seu antigo dono e ver a vida de outra forma. Queria voltar a aprender uma série de coisas com o mocho e voltar a ser aquela tartaruga aventureira que era na sua infância.
Estes dois amigos gostavam tanto um do outro e queriam tanto que o outro fosse feliz, que se esqueceram da sua própria felicidade. O galito queria muito que a tartaruga fosse feliz, de tal forma que não a conseguia deixar viver a vida dela. Já a tartaruga pensava que ia salvar o galito, pois tinha sido através dela que ele tinha aprendido a viver em liberdade. Não realidade nenhum dos dois era livre, porque a forma como gostavam um do outro tornava-os prisioneiros daquele amor. Depois de algum tempo afastados, ambos perceberam que cada um é responsável pela sua vida e pelas suas escolhas e decidiram dar o melhor deles próprios para serem mais felizes.
O galito e a tartaruga encontraram-se algumas vezes nas festas organizadas pelo mocho e pelos coelhos saltitões. Perceberam como estavam diferentes e como tinha sido importante separarem-se e libertarem-se das exigências que faziam um ao outro.
Compreenderam que a amizade não tinha desaparecido, muito pelo contrário, agora admiravam-se ainda mais e respeitavam-se pela escolha difícil que fizeram. Descobriram que aquilo que sentiam era um amor especial. Não voltaram a viver juntos nos tempos que se avizinharam, acharam que ainda tinham que aprender mais um pouco sobre eles mesmos e sobre as emoções. Mas um dia, quem sabe se isso não seria possível, afinal a vida está sempre a mudar.
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